segunda-feira, 20 de abril de 2020


Afrodescendência e Candomblé

Hùnnó Serafim

Os candomblés são instituições responsáveis por denegrir pessoas (torná-las afrodescendentes). Talvez o banzo, sentimento afrossaudosístico arrastando à morte, tenha sido um dos motivos para o surgimento do candomblé. O fato é que os afrodescendentes resistiram às inúmeras atrocidades a eles impostas e re-existiram como uma nova forma de comunidade. Com isso, dignamente demonstraram o axé, a força, o ânimo de sua vida (no sentido pleno de sua compreensão, sua cosmovisão).

Nesses espaços idiossincráticos foram preservados vários elementos afro-culturais, e.g., língua, organização social, economia, herbolaria, culinária, expressões artísticas, educação, memória, política, religião, dentre outros e, por isso, são referências da afro-existência. Estes espaços foram responsáveis desde o princípio pelo processo de iniciação e sua continuidade pelo qual se restitui a afro-ancestralidade, isto é, o afrodescendente inicia a construção de sua identidade enquanto povo, ao mesmo tempo, é feita a ligação de sua dignidade; em outras palavras, empoderamento. Por fim, ressalte-se, ainda, que nessa prática inexiste proselitismo, já que é uma religião de concepção de povo, étnica, por assim dizer.

Desse modo, o afrodescendente passa de um nada, do ponto de vista de um ser destituído de uma história, a um ser agregado em plena dignidade a um grupo. Pois, nas sociedades tradicionais africanas não se concebem alguém desvinculado de algum grupo, como um andarilho (inclusive algo muito mal visto, como se tivesse sido expulso de seu grupo por transgressão), além do mais, as organizações dos europeus preservavam sua filiação pelo sobrenome.

Há que se frisar que os povos africanos e os de terreiros não entendem religião desvinculada da cotidianidade. Religião para o povo de terreiro é fundante da cultura. Prova disso, que a natureza, a realidade, tem suas forças de domínios denominados de orixás (para os descendentes dos povos yorubás), Nkises (para os descendentes bantus) e voduns (para os descendentes dos ajás, ewes e fons do antigo Reino do Daomé), que são seres regentes dos fenômenos naturais e co-regentes dos fenômenos humanos. Essas divindades têm locais (de “moradas”) específicos em pedreiras, florestas, rios, lagoas, estradas, terra, etc., por isso, que o sagrado é cultuado não apenas no espaço construído (o Terreiro), mas para além; sendo sacrilégio (proibição) atitudes (pensar-ser-agir é uma única coisa) prejudiciais que interfiram na natureza (poluição, sujeira, desmatamento, desperdiço de seus gêneros, acúmulo desnecessário, dentre outros), uma vez que se está desrespeitando o santo regente daquele espaço.

Estas organizações, a mais das vezes, foram instituídas distantes dos centros urbanos por vários fatores que se pode aqui ser recuperados, são alguns deles: a) a reprovação dessas organizações dada a temerosidade subjacente do colonizador que compreendia tais espaços como oportunos para originar levantes, b) inexistência de direitos para afrodescendentes e falta de recursos dos mesmos para obtenção de posse de terras, c) política etnocida, i. e., consideração de que qualquer expressão cultural afrodescendente deveria ser exterminada e, por isso, foi-se ilegalizadas.

Não obstante, se pergunta como conseguiram erguer construções dessa natureza. Tem uma parte pouquíssima evidenciada nas aulas de história que é a escravidão urbana na qual os escravizados eram denominados escravos de ganho. Eles viviam na área urbana e vendiam produtos para cumprir uma meta estipulada pelo seu senhor, o excedente era de sua posse. Muitos escravizados, segundos os historiadores, mantinham a casa grande e o seu próprio sustento. Assim, do excedente, quando se podia, era comprada sua alforria e revertido em outros bens. Também, graças a essa modalidade de regime foram possíveis as articulações de motins que eram orquestrados em plena via pública entre os vendedores ambulantes. 

Outros relatos informam que alguns bens adquiridos se deram por algum tipo de cura concedido por afrodescendente a algum familiar de algum fidalgo; este lhe recompensava com presente de sua liberdade e, à vezes, de algum valor em dinheiro.

Os primeiros candomblés de que se tem registro surgiram no Recôncavo baiano na cidade de Cachoeira (1785) e pasmem: na Rua do Pasto, dentro da área urbana. Além do mais, frise-se a exceção, por fatores diversos aqui ignorados da existência de afrodescendentes influentes e de algum poder aquisitivo como dono de fazenda, é o caso de José Maria de Belchior, o Zé de Brechó (Dadá Runhó), e Seu Ventura.  O primeiro é ligado ao Terreiro do Bitedô (1830) que foi transferido por volta de 1860-70 para Fazenda Xarén, este Terreiro era assistido por Tixareme e Ludovina Pessoa; já Seu Ventura, tinha a mulher iniciada, filha de santo de Ludovina Pessoa que juntas fundaram o Terreiro de Sɛ̀jáhùnɖé (lê-se sejá-undê) na fazenda dele passando a ser também conhecido como Terreiro do Ventura.

Há uma curiosidade histórica da possibilidade do Terreiro do Bogun (fundado por Ludovina Pessoa), em Salvador, está ligado a Revolta dos Malês de 1835, já que Luíza Mahin era da mesma etnia daquela casa de santo e do nome daquele Terreiro carregar na sua identificação a terminação malê.

Pelo exposto algumas questões emergem. Será que se pode desvincular afrodescendência de candomblé ou vice-versa? Há como falar de afrodescendência eximindo o elemento afrorreligioso? Pode se afirmar que o candomblé é uma fonte fidedigna de culturas afro-brasileiras? Por que em um país que se diz democrático, as afroexistências ainda sofrem resistências por parte de poderes públicos ao negar deferência às suas representações, por exemplo? Na sua cidade existiu ou existe manifestação/experiência afrodescendente? De que modo? Qual a postura dos poderes públicos? E das pessoas? E a sua? Você é não-racista (não discrimina e pronto) ou antirracista (combate qualquer forma de racismo)?

O fato é que o candomblé tem sua contribuição memorável no seio da sociedade brasileira em vários aspectos e sentidos. Além do mais, no Brasil, ser afrodescendente biologicamente não basta tem que se tornar culturalmente.


REFERÊNCIAS

GONDINHO, Paula. O futuro é para sempre: experiência, expectativa e práticas possíveis. Disponível em: <https://pgl.gal/paula-godinho-resistir-do-latim-resistere-vem-stare-significa-manter-pe-contrariar-gravidade-seja-esta-na-base-da-nossa-propria-historia-humanos/>. Acesso em: 20 abr. 2020.

OLIVEIRA, Océlio Lima de. O Léxico da Língua de Santo: a Língua do Povo de Santoem Terreiros se Candomblé de Rio Branco, Acre. Disponível em: <http://www2.ufac.br/editora/livros/OLXICO_OCLIO.pdf >. Acesso em: 17 abr. 2020.

YOUTUBE. Gayaku Luiza: força e magia dos voduns. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=Y6TXCfUH4V0>. Acesso em: 20 abr. 2020.

WIKIPÉDIA. Roça do Ventura. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ro%C3%A7a_do_Ventura>. Acesso em: 20 abr. 2020.



Fogueira de Xangô ou Sogbô

Fonte das imagens: https://vogue.globo.com/lifestyle/cultura/noticia/2016/12/candomble-e-tema-de-pinturas-raras-de-carybe.html

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