Afrodescendência e Candomblé
Hùnnó Serafim
Os candomblés são
instituições responsáveis por denegrir
pessoas (torná-las afrodescendentes). Talvez o banzo, sentimento
afrossaudosístico arrastando à morte, tenha sido um dos motivos para o
surgimento do candomblé. O fato é que os afrodescendentes resistiram às
inúmeras atrocidades a eles impostas e re-existiram como uma nova forma de
comunidade. Com isso, dignamente demonstraram o axé, a força, o ânimo de sua
vida (no sentido pleno de sua compreensão, sua cosmovisão).
Nesses espaços
idiossincráticos foram preservados vários elementos afro-culturais, e.g.,
língua, organização social, economia, herbolaria, culinária, expressões
artísticas, educação, memória, política, religião, dentre outros e, por isso,
são referências da afro-existência. Estes espaços foram responsáveis desde o
princípio pelo processo de iniciação e sua continuidade pelo qual se restitui a
afro-ancestralidade, isto é, o afrodescendente inicia a construção de sua identidade
enquanto povo, ao mesmo tempo, é feita a ligação de sua dignidade; em outras
palavras, empoderamento. Por fim, ressalte-se, ainda, que nessa prática
inexiste proselitismo, já que é uma religião de concepção de povo, étnica, por
assim dizer.
Desse modo, o afrodescendente
passa de um nada, do ponto de vista de um ser destituído de uma história, a um
ser agregado em plena dignidade a um grupo. Pois, nas sociedades tradicionais
africanas não se concebem alguém desvinculado de algum grupo, como um andarilho
(inclusive algo muito mal visto, como se tivesse sido expulso de seu grupo por
transgressão), além do mais, as organizações dos europeus preservavam sua
filiação pelo sobrenome.
Há que se frisar que os
povos africanos e os de terreiros não entendem religião desvinculada da
cotidianidade. Religião para o povo de terreiro é fundante da cultura. Prova
disso, que a natureza, a realidade, tem suas forças de domínios denominados de orixás (para os descendentes dos povos
yorubás), Nkises (para os
descendentes bantus) e voduns (para
os descendentes dos ajás, ewes e fons do antigo Reino do Daomé), que são seres regentes
dos fenômenos naturais e co-regentes dos fenômenos humanos. Essas divindades
têm locais (de “moradas”) específicos em pedreiras, florestas, rios, lagoas,
estradas, terra, etc., por isso, que o sagrado é cultuado não apenas no espaço
construído (o Terreiro), mas para além; sendo sacrilégio (proibição) atitudes (pensar-ser-agir
é uma única coisa) prejudiciais que interfiram na natureza (poluição, sujeira, desmatamento,
desperdiço de seus gêneros, acúmulo desnecessário, dentre outros), uma vez que
se está desrespeitando o santo regente daquele espaço.
Estas organizações, a
mais das vezes, foram instituídas distantes dos centros urbanos por vários
fatores que se pode aqui ser recuperados, são alguns deles: a) a reprovação
dessas organizações dada a temerosidade subjacente do colonizador que
compreendia tais espaços como oportunos para originar levantes, b) inexistência
de direitos para afrodescendentes e falta de recursos dos mesmos para obtenção
de posse de terras, c) política etnocida, i. e., consideração de que qualquer
expressão cultural afrodescendente deveria ser exterminada e, por isso, foi-se
ilegalizadas.
Não obstante, se
pergunta como conseguiram erguer construções dessa natureza. Tem uma parte
pouquíssima evidenciada nas aulas de história que é a escravidão urbana na qual os escravizados eram denominados escravos de ganho. Eles viviam na área
urbana e vendiam produtos para cumprir uma meta estipulada pelo seu senhor, o
excedente era de sua posse. Muitos escravizados, segundos os historiadores, mantinham
a casa grande e o seu próprio sustento. Assim, do excedente, quando se podia,
era comprada sua alforria e revertido em outros bens. Também, graças a essa
modalidade de regime foram possíveis as articulações de motins que eram
orquestrados em plena via pública entre os vendedores ambulantes.
Outros relatos informam
que alguns bens adquiridos se deram por algum tipo de cura concedido por
afrodescendente a algum familiar de algum fidalgo; este lhe recompensava com
presente de sua liberdade e, à vezes, de algum valor em dinheiro.
Os primeiros candomblés
de que se tem registro surgiram no Recôncavo baiano na cidade de Cachoeira
(1785) e pasmem: na Rua do Pasto, dentro da área urbana. Além do mais, frise-se
a exceção, por fatores diversos aqui
ignorados da existência de afrodescendentes influentes e de algum poder
aquisitivo como dono de fazenda, é o caso de José Maria de Belchior, o Zé de
Brechó (Dadá Runhó), e Seu Ventura. O
primeiro é ligado ao Terreiro do Bitedô (1830) que foi transferido por volta de
1860-70 para Fazenda Xarén, este Terreiro era assistido por Tixareme e Ludovina
Pessoa; já Seu Ventura, tinha a mulher iniciada, filha de santo de Ludovina
Pessoa que juntas fundaram o Terreiro de Sɛ̀jáhùnɖé (lê-se sejá-undê) na fazenda dele
passando a ser também conhecido como Terreiro
do Ventura.
Há uma curiosidade
histórica da possibilidade do Terreiro do Bogun (fundado por Ludovina Pessoa),
em Salvador, está ligado a Revolta dos Malês de 1835, já que Luíza Mahin era da
mesma etnia daquela casa de santo e do nome daquele Terreiro carregar na sua identificação
a terminação malê.
Pelo exposto algumas
questões emergem. Será que se pode desvincular afrodescendência de candomblé ou
vice-versa? Há como falar de afrodescendência eximindo o elemento
afrorreligioso? Pode se afirmar que o candomblé é uma fonte fidedigna de
culturas afro-brasileiras? Por que em um país que se diz democrático, as
afroexistências ainda sofrem resistências por parte de poderes públicos ao
negar deferência às suas representações, por exemplo? Na sua cidade existiu ou
existe manifestação/experiência afrodescendente? De que modo? Qual a postura
dos poderes públicos? E das pessoas? E a sua? Você é não-racista (não
discrimina e pronto) ou antirracista (combate qualquer forma de racismo)?
O fato é que o
candomblé tem sua contribuição memorável no seio da sociedade brasileira em
vários aspectos e sentidos. Além do mais, no Brasil, ser afrodescendente
biologicamente não basta tem que se tornar culturalmente.
REFERÊNCIAS
GONDINHO, Paula. O futuro é para sempre: experiência,
expectativa e práticas possíveis. Disponível em: <https://pgl.gal/paula-godinho-resistir-do-latim-resistere-vem-stare-significa-manter-pe-contrariar-gravidade-seja-esta-na-base-da-nossa-propria-historia-humanos/>.
Acesso em: 20 abr. 2020.
OLIVEIRA, Océlio Lima
de. O Léxico da Língua de Santo: a
Língua do Povo de Santoem Terreiros se Candomblé de Rio Branco, Acre. Disponível
em: <http://www2.ufac.br/editora/livros/OLXICO_OCLIO.pdf
>. Acesso em: 17 abr. 2020.
YOUTUBE. Gayaku Luiza: força e magia dos voduns.
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=Y6TXCfUH4V0>.
Acesso em: 20 abr. 2020.
WIKIPÉDIA. Roça do Ventura. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ro%C3%A7a_do_Ventura>.
Acesso em: 20 abr. 2020.
Publicado também em: https://outrafonte.com/2020/04/20/afrodescendencia-e-candomble-por-hunno-serafim/
Fogueira de Xangô ou Sogbô












