quarta-feira, 27 de março de 2024

 
Crítica Literária
 



Da Obra Meu Desabafo

 

Runon Serafim[1]

 

“Eu pensei: minha vida vai mudar!”[2]

 

Os antigos gregos chamavam thaumazein (θαυμάζειν) fenômenos sublimes e importantes. Os latinos o traduziram por admirāri legando aos falantes da língua portuguesa e expresso como admiração, cuja experiência e ser tomado pela surpresa do olhar que contempla minuciosamente envolvendo seu espectador num êxtase jamais vivido e repetido: o maravilhamento. Assim são as obras inéditas: arrebatadoras, extraordinárias, porque rompem com o status quo, propondo um compromisso avaliador do mundo e reivindicando um outro ainda melhor, no qual a diferença não e impedida de ser admirada e enaltecida, ao contrário, e fomentada.

 

Da obra, Meu Desabafo, infinitas leituras são possíveis graças a profundidade de sua organização. Ela e in limine um testamento no qual muitas vidas estão imbricadas. Um registro histórico pontualmente do habitat guarabirense se estendendo aos limites deste Estado, por fim, confundindo-se com o acervo nacional. E ainda, um convite a pensar sobre a vida ensejado pelos motes dos aspectos sociais e econômicos e proporcionando uma meditação acerca da empatia, da reciprocidade do cuidado, da caridade.

 

O idealizador da obra e um incansável homem, caucasiano, europeu – na verdade, mais brasileiro que muitos – e fundador de uma instituição cuja missão e salvaguardar a vida. Sua dedicação revela que ser humano e fazer coincidir o oficio da liberdade no seu modo de ser e instilá-lo. Some-se a isso, a demonstração de que ser humano, mesmo, e não ter pátria ou qualquer outro rotulo, mas, e estar entre seus semelhantes perseguindo a garantia das vidas em assunção do lugar no qual se encontra considerando-o como lar. E, nessa sensibilidade, foi capaz de atender, uma vez mais, ao apelo de ser Pai de muitos, além daquele já garantido pelo sim a sua vocação religiosa, que, ora faz confundir paroquianos e amecianos, descendentes da AMECC, e seus adjutores.

 

Como se sabe, a esperança do mundo e dos humanos reside nas palavras aliadas a ações. Falatório, retorica e jogos de linguagens são fugas, recursos menosprezantes e desprezíveis. Pois, a palavra, por si só, goza de uma forca muito própria e estupenda, ela inter-rompe, porque e autentica. E é nesta inter-ferência que se dá a criação, o novo ganha vida! Com efeito, o silencio ou outro discurso foi quebrado, em prol daquela palavra que e a fala da realidade se manifestando através de alguém, seu mensageiro. Assim como a palavra se apropria de outro recurso, escrever e uma solução habilidosa e cortes de inscrever-se no seio dos outros e assegurar sua existência no mundo, pondo ambos sob um influxo. Neste lastro, afinados estão Carolina Maria de Jesus (1914-1977), Deodato e tanto outros Cíceros em suas escrevivências.

 

Meu Desabafo e uma obra polissêmica que reúne diferentes vozes comunicando através de imagens e escritos existências singulares que, em conjunto, são um projeto de mundo civilizadamente caritativo, contendo todos os fatos sofridos e silenciados, porém, agora, igualmente, expostos fitando o seu êxito com base na experiencia filantrópica. Meu Desabafo e uma lição ambígua que, por um lado, e uma coleção de relatos evidentes de uma realidade dura e cruel de denegação e o tolhimento de vez e voz, por outro, e o meio pelo qual a ressonância da fala desses autores nunca foi silenciada, posto que, aguardava sua amplificação para ser ouvida e descoberta por aqueles que, a essas vozes, se juntam em uníssono. Ratifique-se que abafar a fala, calar a boca à revelia, não permitir dizer e inumano.

 

Felizmente há outros meios de exprimir as necessidades, de narrar o que se sente, de dizer o que se pensa, de declarar sonhos. E Cicero o fez muito bem! Uma vez que, alçou mãos da pintura e da escrita. Estas revelam muito do mundo daquele jovem, a começar pela relação etária e a simplicidade do uso da linguagem evidenciando sua pouca escolaridade, uma flagrante ausência de políticas públicas ou de sua inexpressiva ingerência, sobretudo, para jovens, os quais, esse estado de coisas, só ampliam a vulnerabilidade. Não obstante, ressalte-se, neste jovem, sua postura corajosa e firme transcendendo todas as condições mortificantes pela fé na esperança.

 

Na figura de Deodato está contemplada a população negra deste pais, vítima de uma herança colonial resistente e, agora, vacilante; mas, acima de tudo, um contributo desumano e caduco. A expressão Deodato configura franco exemplo de cultura solidaria visando o bem comum e ate mesmo o Sumo Bem, manifesta na conquista do Conselho Municipal de Crianças e Adolescentes de Guarabira, na aplicação da Teologia a vida cotidiana como uma liturgia atuante e na instituição da Associação Menores com Cristo (AMECC). Assim, a profecia de Deodato na epigrafe se consolidou, ao passar de um cárcere frio na experiência dos abandonos e ao “refugio” da rua, dos desafetos familiares, da ausência de um lar e do cárcere literal a liberdade concretizada no abrigo PADRE-AMECC.

 

Nesses passos, fica fácil de compreender que a vida de alguém sempre está enredada a outras, logo a decisão de um afeta possivelmente tantas outras. Foi o caso da existência Deodato que suscitou e promanou a resposta AMECC no seio de seu fundador, que ao abraçar a ideia, não se deu conta que sua lida o conduziria ao cultivo de vidas que se entrelaçariam para sempre a sua própria. À medida que tudo isso ganhava folego, se nota que se requisita, constantemente, um solo fértil, autossuficiente e muitas vezes só na companhia do invisível (planos) e de sua fé, a fim de dar conta de sua seara. Portanto, um Novo Dom Bosco, por assim dizer, entra em cena. Sem comparações, pois, todos são singulares, porém, uma ilustração melhora nossa compreensão.

 

Ainda no tocante a Deodato, ele e aquela porta que permite a sua localidade a pensar sobre questões de justiça social, dignidade humana, vivencia real de princípios éticos e religiosos, em suma, arriscar-se na investida da complexidade humana, tanto na busca pela sua compreensão, quanto no apoio necessário a sua realização (a própria e a dos outros). Com efeito, Cicero Deodato se revela como “o homem, determinado pela vontade de marcar no mundo exterior o cunho do seu espirito para nele se reconhecer, busca exprimir sensivelmente numa forma adequada a universalidade que concebe, a liberdade que aspira, a infinitude que o constitui”[3]

 

Os percalços pelos quais passou, os quais jamais mencionou em público, levando consigo para sempre, podem ser encontrados aí em suas obras ao modo de palimpsesto e pentimento por especialistas e estudiosos que nelas se debruçarem. Vencer o senso comum que se atem as suas ações reprováveis e restituir a tais episódios o seu teor, qual seja, indicio de uma existência em desespero provocada pela violência infringida a ele suscitada pela hostilidade generalizada e frequente de seu ambiente, em suma, ausência de bem-estar.

 

Este discurso segue num tom elogioso ao Padre, sem qualquer gratuidade, pois devotar a vida a causa publica, embora seja nosso pendor natural e garantia mutua, e tarefa árdua e um horizonte de expectativas que não admitem falhas, sob pena de desmoronamento do projeto. Portanto, requer alimenta-lo diariamente, que se confirma por uma vida dedicada ao seu serviço. Além dele constituir um dos elementos históricos de Guarabira, pois, suas ações reconduziram o ordenamento daquele lugar e inexiste possibilidade de dissociar as existências Deodato e Pe. Geraldo, uma vez que, já perfazem as faces de uma única moeda.

 

E chegando ao fim dessa laudação acerca dos frutos de trabalhos alcançados, acrescer um motivo, a saber, o silencio também e um sentir-se leve e nesta quietude encontrar o azo da palavra: aquele apelo que somente pode ser escutado mediante a calmaria, aquele sentido que demanda a vida. Uma experiência bem expressa neste trecho: “Silencio. Maravilhar-se, refletir e agradecer com confiança, essa e provavelmente a melhor resposta a vida de Cicero, que se manifesta a todos nos em seu diário e em seus desenhos”[4]

 

Será que Meu Desabafo figurara como mera obra de enfeite numa estante? Será ela relegada ao esquecimento ou figurara como um ponto de partida para admissão de erros, omissões e evidenciação de responsáveis? Será que a obra em questão não e uma proposta a superação de descasos de fatos inspirando sua identificação e cuidando para combater casos de naturezas similares, e oxalá impedir semelhantes acontecimentos? Talvez ela possa ser comparada a Helen Keller (1880-1968), privada da visão e da audição e, mesmo assim, conseguiu, por intermédio da professora Anne Sullivan (1866-1936), se tornar uma celebre escritora e eximia conferencista.

 

Finalmente, talvez seja preciso retornar ao início, ao thaumazein (θαυμάζειν), assegurando-o como um eterno despertar para o mundo, este aí pertinho e circundante a ti, do qual provem tua nutrição, teu sustento, teu ambiente de vivencia, enfim, tua existência e, assim, poder ouvir o apelo do outro e se juntar a ele numa consonância, semelhante a voz de Cicero e a atitude do Pe. Geraldo, num doce e acolhedor “Confie em mim!”[5]

 

Cite 
SERAFIM, V.F.M. Da Obra Meu Desabafo - Crítica Literária. Disponível em:<https://zeniste.blogspot.com/2024/03/critica-literaria-da-obra-meu-desabafo.html?m=1>. Acesso em: Dia mês ano. 

[1] Nome social de Vicente Fagner Morais Serafim. Bacharel, licenciado e mestre em Filosofia pela UFPB, Doutorando em Metafísica (UERJ), Coordenador do Comitê da Consciência Negra Luíza Mahin de Guarabira (CCN), membro dos NEABI’s da UEPB Campus III e do IFPB Campus Guarabira e Sacerdote de Candomblé Jêje.

 [2] DEODATO, 2023, p. 200.

 [3] HEGEL, F. Vorsesungen über die Ästhetik I, Werke 13. Frankfurt am Main: Surhkamp, 1970 (p. 205).

 [4] BRANDSTETTER, 2023, p. 220.

 [5] DEODATO, 2023, p. 36

Texto para o evento de25 Mar. 2024