sábado, 31 de outubro de 2020

 


A obra intitulada Săw Zūgbí (São Zumbi), com data de 27 de outubro de 2020, foi idealizada por Hùnnó Serafim[1] e pintada por Lucas Santos[2]. Na pintura, Zumbi aparece vestido nas cores verde e amarelo com detalhes em preto em referência ao povo Jeje[3] (sendo uma adaptação ao contrário, já que, para esse povo, a predominância é o amarelo sobre o verde), ao mesmo tempo em que referencia as cores da bandeira brasileira cujo sentido é a demonstração de que houve preservação afro-cultural neste país por meio dos processos de resistências. Curiosamente, as cores em questão são as mesmas da Casa Real dos antigos monarcas do Brasil. Essa ambígua informação tem o sentido de afirmar que a realeza daomeana é mais antiga que esta e foi alvo dos desumanos projetos coloniais. As miras, no que tange ao sentido na obra, foram inspiradas no sistema adinkra, comunicam que as pessoas negras foram e continuam sendo alvo do Estado brasileiro, em termos de extermínio: etnocídio e genocídio. Mas, Zumbi (o povo afro-brasileiro) está de pé não se intimidando com as reais ameaças e ataques, já que, considera a ausência da dignidade humana uma espécie de morte. Logo, se render não é opção. Sua lança confere-lhe o status de guerreiro e o eruxim na mão esquerda, como toda indumentária, o status real, além de indicar seu poder nato de liderar. A paisagem natural remete ao Quilombo de Palmares, por extensão, à beleza desse país. A vassourinha doce (Scoparia dulcis L.) significa sua autoridade sacerdotal, pois, esta planta é considerada sagrada e, por isso, utilizada por muitos candomblés. O semblante tranquilo de Zumbi revela intrepidez. Ao fundo, um céu claro de sol representando a bênção dos voduns sobre aquele que reúne toda cosmovisão de seu povo e é uma referência ao horizonte no qual céu e oceano se tocam para lembrar sua origem intercontinental. Sua conta de pedras amarelas e búzios reforçam sua condição real. A dupla ponta da lança remete à junção dos povos como um só: afro-brasileiro, como também, sua imortalidade na história de ambos. O pano que lhe pende do ombro esquerdo com suas cores e figuras revelam a existência de suas lutas e ideais, bem como, de poder, ao mesmo tempo em que serve de inspiração para seu povo: toda comunidade nacional negra. O termo São, inspirado no sentido católico e ressignificado, atesta: sua excelente qualidade humana pelo exemplo de vida, sua condição de herói, como também, é uma representação de tantos Zumbis que lutaram e lutam, que foram assassinados e tantos outros que resistem. Por fim, inclui-se o sentido do verbo ser no presente e no plural, portanto, ele é (coletividade), não está morto vive em cada ato de resistência, pois, é um ancestral. O gorro em cone além de ser uma coroa e lembrar o formato do telhado das moradas do Daomé, é uma referência a um conto do orixá Exu que nada carrega sobre sua cabeça, assim, significando que Zumbi viveu para seu povo e tem dignidade ancestral. A obra saiu do atelier para um comprador no mesmo dia em que ficou pronta.

Texto de autoria de Hùnnó Serafim, o idealizador da obra.

Guarabira, 31 de outubro de 2020.



[1] Vicente Fagner Morais Serafim: Bel., Lic. e Me. em Filosofia. Esp. em Arte-Educação. Professor de Filosofia. Coordenador do CCN – Comitê da Consciência Negra Luíza Mahin e Sacerdote Jeje.

[2] Lucas Santos é estudante da 3ª série da Escola Cidadã Integral Técnica Monsenhor Emiliano de Cristo.

[3] Os antigos daomeanos.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

 

Fonte: https://i.pinimg.com/originals/a9/e1/2b/a9e12ba03db700f822f8b55fff38a631.png


Comemoração do Saci-pererê: fortalecimento da brasilidade e combate à colonização cultural

Hùnnó Serafim

A comemoração do dia do Saci-pererê em 31 de outubro foi uma estratégia encontrada para valorização e fortalecimento do folclore nacional e é um ato de resistência contra o colonialismo cultural. Pois, ao considerar que a importação de produtos culturais tem solapado fatos culturais nacionais, assim, promovendo a perda de identidade cultural, eclipsando a história nacional e provocando uma extensão colonial de modo sorrateiro, urge pensar sobre as ditas celebrações culturais importadas, os estrangeirismos.

Até porque, sabe-se que todo povo necessariamente tem seu folclore que emana de uma dinâmica cultural e, por fim, passando a compor sua história, sua cosmovisão. Esse processo considera as dinâmicas sociais e sua relação com a natureza, já que não desvincula-se da interação homem e ambiente natural. Com efeito, as características geográficas locais são elementares na origem de todo e qualquer processo cultural. Assim, são as najas que adornam coroas faraônicas.

O termo comemoração tem uma profundidade, pois, formou-se a partir de um processo de aglutinação da preposição com, que significa: juntar, estar juntos, ligados, nosso, relação de pertencimento; e memoração do vocábulo memória e da desinência de ato ção, oriundo do termo ação, que, por sua vez, significa presença. Assim posta etimologicamente, o sentido do termo comemoração é celebrar aquilo que faz parte da própria memória, i. e., da própria história.

A troca de manifestações culturais no Brasil evidencia valores coloniais arraigados na sociedade brasileira de supervalorizar produções estrangeiras, dentremente as nacionais. Ao que parece, cada vez mais, é difícil se desvencilhar dessa ideologia colonial cultural. Basta fazer uma consulta rápida inquirindo alguém sobre o nome de filmes a que assistiu; é muito provável que ele cite títulos estrangeiros ignorando a produção nacional ou ao se perguntar se curte filmes nacionais, poderá expressar absoluto desinteresse. O que soa muito estranho, pois, em termos de proximidade, os produtos estrangeiros estão mais distantes espacialmente e há um gasto a mais com licenças, traduções dentre outras formas onerosas, contudo, nada disso é empecilho para atingir o grande público.

Já a produção cinematográfica nacional, por exemplo, é, nos mesmos critérios, espacial e culturalmente mais próxima, infelizmente ainda, é ignorada e, até mesmo desdenhada[1] o que se pode concluir a partir das informações disponíveis nas páginas do sítio da ANCINE (Agência Nacional do Cinema)[2]. Por tabela, o mesmo ocorre com as demais expressões culturais no campo das artes de um modo geral, mencione-se ainda sua ocorrência em muitas expressões linguísticas. Por isso que, repensar e reconhecer o lugar da comemoração do Saci-pererê é um exemplo de exercício de valorização da cultura nacional, de emancipação do pensamento colonial cultural e ato de resistência aos estrangeirismos.

Pois, há que se saber que, o Saci-pererê tem uma origem nacional graças à miscigenação entre etnias que constituem a alma do povo brasileiro. Assim, é uma composição geneticamente mitológica entre o conto indígena e uma afro-caracterização, além de outras referências culturais que compõem a cultura nacional. Por um momento, o Saci-pererê já foi bem reconhecido no imaginário da cultura nacional influenciada pelas obras de Monteiro Lobato cuja série é denominada Sítio do Picapau Amarelo[3] da qual se fez uma versão para TV, dentre outros recursos midiáticos.

Sendo assim, o dia 31 de outubro ao comemorar o Saci-pererê não só intensifica sua identidade cultural ao agregar mais elementos a essa representação genuinamente brasileira, como também, resiste à colonização da mente. Além de garantir nossa emancipação criativa dispensando o con-sumo de ideias que atestam a incapacidade de criação de sua própria história ou revela desdém e, na menor das hipóteses, ignorância de sua própria cultura.

Esse texto não pode ser acusado de bairrismo, pelo simples fato de que, uma coisa é: a) as instituições mencionarem a existência de eventos paralelos ao dia de uma celebração nacional, por uma questão informacional; b) outra coisa, é soterrar uma comemoração mediante supervalorização de um evento cujas origens, muitas vezes, é ignorada pelos próprios proponentes importadores.

As questões vão surgindo:1)quando se tem um pendor para uma cultura externa ao seu país será que isso não atesta um exemplo de pessoa colonizada (mentalmente)?  Se a pessoa é um disseminador de elementos culturais externos não está sendo um instrumento de colonização?  Por que optar pela celebração internacional x e excluir a celebração de um evento de sua própria cultura?

É bem posto um questionamento de alguns estudantes, que diz: “Você quer entrar na minha mente?” Essa questão demonstra a postura não passiva, exprime estado de alerta, o cuidado que eles têm de não terem suas mentes invadidas. Ela revela que a manipulação das mentes é uma realidade e que há necessidade de um zelo com o que se con-sume, pois, o termo consumir significa diluir-se em meio a, fazer parte de, tornar-se igual a, pensar semelhante, em suma é com+sumir= a desaparecer enquanto singularidade e pertencer a um conjunto. A questão é: pertencer a qual conjunto? No caso, a qual povo? Por extensão, pululam as questões: quem sou eu? Onde me formei como sujeito? Com qual povo mantenho existência (traços culturais; a que cultura pertenço)?

Será que por trás dessas situações não estão os objetivos intencionais meramente mercadológicos da venda e da troca de produtos culturais? Já dizia Paulo Freire: “O discurso da globalização que fala da ética esconde, porém, que a sua ética é a ética de mercado e não a ética universal do ser humano[4], ou seja, além do valor monetário trata-se de um processo de massificação e de colonização cultural.

Aos docentes, sobretudo, implica o abandono da operação de modulação das mentes. Com efeito, seu ofício é libertá-las, fazê-las pensar sua cultura, sua história. Nunca direcioná-las à subserviência, pois, isso não é educar, mas catequizar (no sentido jesuíta do termo seiscentista), colonizar, instrumentalizar, adestrar.

É preciso considerar os mitos, as lendas, em suma, o folclore de sua própria gente, a fim de que se possa compreender sua existência como indivíduo e, ao mesmo tempo, como membro de um povo.  Pois, a memória deve ser ativa, que significa não apenas preservar, mas, tomá-la como registro de fatos que devem ser compreendidos em sua gênese, finalidade e consequências. E de um modo mais profundo compreender que “a memória é uma função muito elaborada que atinge grandes categorias psicológicas, como o tempo e o eu. Ela põe em jogo um conjunto de operações mentais complexas[5] que faz coincidir sentir (sensação) e pensar (razão, consciência).

Em conclusão, este artigo discutiu a necessidade que há em avaliar a finalidade de introdução de celebrações estrangeiras em âmbito nacional, o que constitui ato evidente de apropriação cultural. Portanto, este texto é um panfleto de alerta. Citou-se a relação nacional: público e cinema para ilustrar que a tarefa ainda no Brasil é a desvinculação das ideologias resquiciosamente coloniais que persistem no imaginário impedindo a emancipação cultural e a superação de supervalorização do estrangeirismo. 

Vivaxé Saci!

 

 


Onde saber mais:

Ø  Projeto de Lei que institui 31 de outubro Dia do Saci

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=3F1681CE2E36828DEDFDA88D09D6A591.node2?codteor=301007&filename=Avulso+-PL+2479/2003

Ø  Lenda do Saci Pererê: Turma do Folclore

https://www.youtube.com/watch?v=um1WHr1ejow

Ø  Música do Saci Pererê: Turma do Folclore

https://www.youtube.com/watch?v=ljTSqTkaseA

Fonte: https://static.ndonline.com.br/2012/10/31-10-2012-09-48-08-ilustra-saci.jpg

 


[1] AGOSTINHO, A. L.; MESQUITA, M. Cinema brasileiro é ruim? O crescimento da produção nacional e a influência estrangeira. Disponível em: <http://reporterunesp.jor.br/2017/11/14/cinema-brasileiro-e-ruim/>. Acesso em: 27 out. 2020.

[2] https://www.ancine.gov.br/pt-br/sala-imprensa/noticias/ancine-lan-nova-campanha-publicit-ria-pela-valoriza-o-do-audiovisual

[3] O Saci, 1921. É o escrito detalhado dessa personagem.

[4] FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996 (p. 127).

[5] VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica. 2ª Ed.Trad. Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008 (p. 136).